‘Miscelânea’ visita obra de Bernardo Guimarães nos seus 200 anos
Duzentos anos após seu nascimento, Bernardo Guimarães volta a ser debatido não apenas como figura histórica da literatura brasileira, mas como autor de uma obra que ainda dialoga com temas como escravização, identidade cultural e crítica social. É o que mostra Miscelânea, Nos Passos de Bernardo Guimarães, livro organizado pela pesquisadora Francelina Drummond, que reúne escritos inéditos ou pouco conhecidos do autor, muitos publicados originalmente em jornais do século 19 e jamais editados em livro.
Livro revê poemas, reflexões e a criação do romance sertanejo
A ideia de lançar Miscelânea, Nos Passos de Bernardo Guimarães nasceu da longa pesquisa de Francelina Drummond sobre a imprensa de Ouro Preto no século 19, na qual identificou uma série de folhetins literários, crônicas políticas e poemas do escritor que não constavam, ainda, de sua bibliografia oficial. “Foi um trabalho imenso. Eu localizei 250 jornais na cidade, em um período de 70 anos. A Escrava Isaura, por exemplo, chegou a ser publicada em folhetim antes de virar livro, mas essa versão foi interrompida”, explica ela, em entrevista para o Estadão.
Parte desse material foi encontrada em jornais mineiros, outros em acervos do Rio de Janeiro e de Goiás, onde o autor trabalhou como juiz. A obra foi lançada na quarta-feira, 13, durante o evento da Semana Bernardo Guimarães, em Ouro Preto, Minas Gerais.
O caso de A Escrava Isaura chama atenção por não constar nos registros tradicionais da história da literatura brasileira. Como era comum no século 19, romances estreavam em formato seriado nos jornais, ocupando a parte inferior da primeira página e, às vezes, também a terceira. Em setembro de 1874, O Globo publicou três capítulos do romance, mas interrompeu a série a partir de 6 de setembro daquele ano, sem dar explicações.
Campanha. O espaço passou a ser ocupado, em 26 de setembro, por A Mão e a Luva, de Machado de Assis, sem interrupções. A razão veio de fora: o jornal O Apóstolo, dirigido pelo monsenhor José Gonçalves Ferreira, iniciou uma campanha contra A Escrava Isaura.
A seleção dos textos para o novo livro levou em conta tanto a relevância temática quanto a diversidade de gêneros explorados por Guimarães, incluindo romances, poemas e reflexões publicadas originalmente na imprensa do século 19. “É interessante porque ele vai criticar autores, poetas de renome da época. Foi ousado, muito determinado a fazer uma crítica, como ele mesmo diz, científica. Por exemplo, ele tem coragem de criticar Gonçalves Dias”, conta Francelina.
A curadoria do material buscou equilibrar o interesse de dois perfis de leitores: o público em geral, curioso pela obra do escritor; e o especializado, caso de estudantes de Letras, Jornalismo e pesquisadores.
Crítica. Entre os temas que tornam o autor atual, a organizadora destaca a crítica à escravidão, à dependência cultural do Brasil e a questões indígenas. “O romance da literatura brasileira, até a década de 1860, era basicamente urbano. Ele inaugura em 1866 um romance passado no interior do País. E cria, assim, uma tradição de narrativas que têm esse tipo de homem, um sertanista. A fala, o costume e a natureza dessa população começam a fazer parte do literário”, afirma.
Nonsense. Outro aspecto resgatado no livro é o lado experimental e pouco conhecido de Guimarães, como sua poesia grotesca e de humor nonsense, que dialoga com tradições europeias como a de Baudelaire – mas também com autores brasileiros como Cruz e Sousa e Machado de Assis.
São poemas dispersos em sua obra completa, como A Orgia dos Duendes, O Nariz Perante os Poetas (1865), O Elixir do Pajé(1875), A Origem do Mênstruo, Disparates Rimados, Eu Vi dos Polos o Gigante Alado e Parecer da Comissão de Estatística a Respeito da Freguesia de Madre-de-Deus-do-Angu(1883), entre outros.
Mais que homenagem, Miscelânea é um convite à releitura. “Além de importante para a literatura contemporânea, é um capítulo da história nacional. Um vigilante que vê tudo, e testemunha a história”, afirma Francelina. Ela destaca ainda que o livro busca contribuir para a valorização da memória cultural de Ouro Preto e de Minas Gerais, reconectando leitores com a herança da região.
Do Texto ao Desenho. As ilustrações que compõem o livro também revelam uma dimensão afetiva e reflexiva da obra. Criadas pelo Atelier Dois Capelistas, composto por Leandro Vilar e Aurélio H. dos Santos, elas foram feitas em nanquim sobre papel, a partir de um mergulho nos textos e no universo de Bernardo Guimarães. “Conforme você vai lendo, o seu cérebro já vai criando as imagens. Criar as ilustrações não foi difícil, ele nos guiou”, conta Leandro.
Ao longo do processo, o sentimento de melancolia presente nos escritos transbordou para os desenhos, que carregam um tom introspectivo, irônico e crítico, fiel ao espírito do escritor. Além de contribuírem visualmente para a leitura da obra, os artistas ampliaram o projeto para além do livro.
A partir das ilustrações, nasceu uma exposição no Museu Casa dos Contos em Ouro Preto e a criação do “Nos Passos de Bernardo Guimarães”, um roteiro que mapeia 13 locais marcantes da trajetória do autor em sua cidade e na região. “Hoje, quando a gente anda pela cidade, o olhar mudou. A gente refletiu sobre esses espaços, e isso transformou até o nosso cotidiano na cidade”, acrescenta Leandro.