O que Trump e Lula vão discutir? Terras raras, big techs e até Venezuela devem entrar na pauta

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não deve impor restrições à pauta de discussões com o presidente americano Donald Trump e está aberto a debater assuntos que podem gerar um acordo, como eventual parceria na exploração de minerais críticos (sobretudo as terras raras), e até a regulação de big techs, pauta de choque entre os governantes. Outro assunto conflitante é a crise na Venezuela.

Nos bastidores do governo brasileiro, autoridades envolvidas na preparação da futura reunião presidencial Lula-Trump apostam que essas três questões vão aparecer nos futuros contatos, embora não tenham sido discutidas até o momento entre eles. Trump tem insistido que deseja fazer “negócios” e que Brasil e Estados Unidos “vão se dar muito bem juntos”. As falas foram interpretadas como sinais de que ele deseja um acordo na esfera econômica.

Lula já indicou não ter barreiras e a pauta energética como de interesse mútuo. No caso dos minerais críticos, o governo brasileiro vai defender que os investimentos americanos são bem-vindos e insistir que devem ser extraídos e processados industrialmente no Brasil. Durante o governo Joe Biden, os países assinaram um acordo no setor para pesquisas e indicaram interesse em aprofundar o diálogo sobre minerais estratégicos, mas não teve sequência ainda durante a administração do republicano.

Já no campo da regulação econômica ou de moderação feita pelas plataformas, há um embate mais claro. O governo Trump defende a liberdade total e apontou censura no Brasil, mas o governo Lula tem como bandeira avançar a regulamentação das big techs – o governo diz que esse é um exercício de soberania e que não pretende atingir a liberdade de expressão, nem discriminar empresas americanas.

Trump quer encontrar uma saída que soe como vitória, segundo autoridades brasileiras. O governo Lula aposta no win-win (ganha-ganha), como disse o vice-presidente Geraldo Alckmin. As opções são conhecidas, mas o debate ainda não começou. O Brasil chegou a enviar uma proposta de acordo em julho, mas se queixou que jamais recebeu resposta. O inteiro teor não veio a público, embora ambos os lados conheçam o mapa do caminho e possam preparar rapidamente um cardápio de opções para os presidentes.

A futura reunião de equipes em Washington, cuja primeira janela seria o fim da próxima semana, deve ocorrer sob liderança dos chanceleres Marco Rubio (EUA) e Mauro Vieira (Brasil) e iniciar os debates pontuais e mais detalhados. No início da próxima semana, enquanto Lula e Vieira viajam a Roma, na Itália, para um evento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Trump e sua equipe planejam ir ao Egito, para assinar documentos do acordo de paz.

Se for confirmada a partir de quinta-feira, a reunião entre Rubio e Vieira ocorreria antes, portanto, de os presidentes se encontrarem em Kuala Lumpur, na Malásia, onde participam como convidados da reunião de líderes da ASEAN, bloco econômico do Sudeste Asiático. Trump e Lula devem estar na mesma cidade ao menos no próximo dia 26, mas não amarraram ainda uma reunião de trabalho.

Entre os obstáculos para uma reunião mais imediata estão o shutdown orçamentário e a agenda exterior de Trump vinculada à mediação do cessar-fogo entre o grupo terrorista Hamas e Israel, na Faixa de Gaza. Depois, somente haveria uma brecha em meados de novembro, após a abertura da COP-30, conferência em que a presença de Trump é considerada mais do que remota. Ele não deve ao G-20 na África do Sul. Apesar da disposição de ambos, a visita de Trump ao Brasil ou de Lula aos EUA é considerada mais remota no curto prazo.

Venezuela e Haiti

O Departamento de Estado informou que, além de interesses econômicos mútuos, os chefes das diplomacias americana e brasileira devem abordar “outras prioridades regionais”. Para integrantes do governo Lula, a expressão indica interesse americano em colocar em pauta, além das questões bilaterais, temas como a crise de segurança no Haiti e, sobretudo, a operação militar americana no entorno da Venezuela, no Mar do Caribe, justificada como forma de combate ao narcotráfico.

Lula já criticou a abordagem com emprego de Forças Armadas contra o crime e se recusou a adotar a definição de que as facções se equiparam ao terrorismo. Ele fez enfáticas críticas à operação aérea e naval e comparou o bombardeio de barcos venezuelanos de pequeno porte, tripulados por supostos traficantes, à execução sem julgamento.

“Usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento. Outras partes do planeta já testemunharam intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia evitar, com graves consequências humanitárias. A via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela”, disse Lula.

Diante de sinais dúbios e reiteradas ameaças americanas – na ONU Trump chegou a dizer “vamos explodir vocês” -, o governo brasileiro teme que uma tentativa de derrubar o regime de Nicolás Maduro possa ter consequências graves no êxodo venezuelano. Caracas se arma para a defesa. A imigração é uma pauta sensível para os dois governos. A situação é considerada grave no Palácio do Planalto.

Para o Planalto, o fato de Lula ter se recusado a reconhecer a reeleição fraudada por Maduro, histórico aliado e apoiador, e evitado contatos com o ditador fortalece a capacidade de diálogo com Trump. Lula ajudou a reabilitar Maduro politicamente, mas depois se afastou após ter sido ignorado e atacado pelo chavismo, que se recusou a mostrar a provar o resultado das eleições. O Planalto descartou, porém, romper laços diplomáticos.

Já no caso haitiano, os EUA buscam há alguns anos maior envolvimento direto do Brasil, que liderou missão militar de capacetes azuis perante a ONU. O País recusou pedidos do governo Biden para reassumir uma posição similar e mesmo mandar tropas, ainda que de policiais agora, e se dispôs a oferecer apenas treinamento e assistência técnica.

Recentemente, o Conselho de Segurança aprovou a ampliação da missão multinacional de apoio à segurança, liderada pelo Quênia, mas que enfrenta problemas de escassez de agentes policiais e equipamentos. O escritório local da ONU vai dar suporte e se envolver mais. Os presidentes também devem debater as guerras em Gaza e na Ucrânia, e a crise climática, em geral negada por Trump.

Café, carne e etanol

Estrategistas do governo ponderam que o Brasil não deve fazer concessões em áreas de interesse dos EUA, como o café e carne bovina, cuja escassez pode gerar inflação no mercado americano. Os produtores brasileiros abastecem cerca de 30% da demanda interna por café nos EUA, segundo dados do Cecafé (Conselho dos Exportadores de Café do Brasil).

Durante o telefonema presidencial, além de brincarem com relação à idade – ambos vão completar 80 anos em 2026 – Trump indicou que os americanos “sentem saudades” do café brasileiro. No primeiro mês do tarifaço, o preço de venda do café no mercado americano subiu 21% comparado com o mesmo mês do ano passado, o maior aumento anual desde 1997.

Uma solução já cogitada seria o governo americano liberar todas as importações de café da sobretaxa, algo que já foi citado até publicamente pelo secretário de Comércio, Howard Lutnick. Não seria uma concessão individualizada ao Brasil, mas ela beneficiaria a indústria nacional.

Outro setor que deve gerar embates duros é o energético. Ao ouvir as reclamações sobre a tarifa de 18% sobre o etanol de milho americano, por exemplo, o governo e o setor privado nacionais pretendem retrucar com o questionamento ao sistema de cotas e à taxação do açúcar de origem brasileira nos EUA, que já atingiu picos de 150% fora da cota. Seria uma forma de olhar toda a cadeia do setor e tentar obter concessões. Máquinas e equipamentos e o setor moveleiro são vistos como mais complicados de obter exceções ou mesmo eliminar a sobretaxa.

Para integrantes do governo, a situação na pauta bilateral é bem conhecida e explorada de ambos os lados, o que permitiria avanços concretos e rápidos a partir de contato de alto nível técnicos e políticos, prévios à reunião presidencial. Isso porque o comércio foi amplamente debatido, por exemplo, no processo de investigação da Seção 301, no USTR, onde os setores puderam se pronunciar.

Descontaminação

Interlocutores do Itamaraty e do Palácio do Planalto comemoraram os desdobramentos recentes na relação agora destravada entre Lula e Trump, mas ressaltam que o jogo não foi “resolvido”. Nesse sentido, evitam ainda cantar vitória contra o lobby bolsonarista em Washington.

O governo brasileiro celebrou ao menos ter estancado os ataques à soberania nacional com as sanções e o tarifaço, após abrir um canal direto entre os presidentes, e que não houve discussões, até o momento, de viés político. Um integrante do governo disse que, além de conter danos, é necessário trabalhar mais para “descontaminar” a relação bilateral aspectos políticos divergentes.

Para a Presidência, distúrbios econômicos na relação com os EUA acabam criando problemas políticos internos. Eles querem tirar do radar qualquer possibilidade de interferência de Washington na eleição presidencial de 2026, seja por meio de sanções ou tarifas e ainda um questionamento à legitimidade do resultado. Embora ainda achem que Trump possa indicar preferência por um governo mais alinhado de direita, dizem que o objetivo é preservar a realização do pleito e minimizar o risco de contestação.

Na estratégia diplomática, o telefonema presidencial solicitado por Trump e atendido por Lula foi a “continuidade” do encontro no backstage da ONU, em Nova York, e mais um estágio para “construção de confiança” entre os líderes. O presidente brasileiro se surpreendeu com a deferência com que foi tratado, segundo uma testemunha da conversa intermediada por um pedido da Casa Branca, via embaixada americana, três dias antes.

Foi notado no Palácio do Planalto que os americanos não tocaram em temas de política doméstica brasileira – nem no processo contra Jair Bolsonaro e tampouco em medidas judiciais que atingiram plataformas digitais. Assim como nos comunicados brasileiros, Trump e o Departamento de Estado relataram interesse e foco em assuntos econômico-comerciais.

No entanto, consideram que as posições conflitantes dos países “continuam as mesmas” – e conflitantes -, apesar do sinal de possível correção de rumo por parte de Washington. Um interlocutor do governo diz que o Palácio do Planalto deve adotar postura realista e não pode perder de vista que a crise não foi resolvida – os dois lados não estão ainda na fase de discutir setores econômicos que possam ser isentos de tarifas, eventuais acordos e a suspensão de sanções a autoridades brasileiras.

Houve indicações de que o governo Trump está recalculando a rota, mas não existe ainda “normalidade” na relação e impera um “desequilíbrio” que requer mobilização diplomática. Se não conseguiu ainda eliminar o tarifaço nem reverter as sanções individuais contra autoridades do Supremo e do Planalto, ao menos o governo Trump conteve os ataques verbais e não emitiu, até agora, novas punições.

Também cessaram declarações críticas de autoridades do Departamento de Estado, seja do secretário Marco Rubio ou de subordinados a ele. Apesar de a escolha ter gerado apreensão no setor privado e no governo, pela postura “linha dura” de Rubio, diplomatas dizem que ela é natural pela posição que ele ocupa – secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca. Mesmo que contrariado, apostam que ele vai cumprir as ordens da política externa trumpista e já deu início aos tratativas, por meio de telefonema ao ministro Mauro Vieira.

Para um estrategista do governo, Trump começou a dar ouvidos a outros olhares sobre a situação interna no Brasil a partir da condenação de Jair Bolsonaro. Um dessas vozes é de Richard Grenell, enviado especial para Missões Especiais de Trump, que veio ao Rio de Janeiro conversar com o ministro Mauro Veira, em 15 de setembro, como revelou o Estadão.

Durante o telefonema com Trump, Lula citou o tarifaço de 50% (10% recíproco + 40% de sobretaxa) bem como as medidas restritivas de vistos e da Lei Magnitsky, impostas a autoridades brasileiras, que ele considera “injustas”. O governo brasileiro diz que é necessário resolver ambas. No segundo mês do tarifaço, houve uma queda geral de 20% nas exportações brasileiras para os EUA.

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Estadão

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